A Velha Senhora
Por Amanda Muniz
Decidi escrever sobre um fato verídico, que mexeu profundamente com tudo aquilo em que eu acredito. Enquanto esperava meu meio de transporte para ir embora, sentei-me ao lado de uma velha senhora. Aparentemente feliz, ela começou a puxar assunto comigo.
Me contou um pouco dos tempos de antigamente, rsrsrs... clássico. Disse que na época dela, nenhuma das construções que nos rodeavam havia sido erguida e que da mata nativa que engolia aquele espaço, ela retirava lenha para ascender seu fogão. Confesso que não estava muito interessa, mas se alguém puxa papo comigo eu procuro ser simpática e dar atenção.
Pois bem. Eis que passa a nossa frente uma mulher muito bem vestida e arrumada, de scarpan chiquetérrimo. A senhora pareceu observar os sapatos tanto quanto eu, e me revelou que em sua época, ela não tinha condições de usar nenhum chinelo que prestasse. Que hoje, suas condições eram melhores sim, mas seus ossos já estavam frágeis demais para que ela possuísse certas vaidades. Me disse que atualmente as pessoas se preocupam em trabalhar, estudar, fazer vestibular e adquirir bens, mas que isso tudo é uma grande besteira. Por que assim, não temos tempo (palavras da senhora) “de namorar, de sair, passear” – de viver.
Então ela me contou, que já havia “levado três filhos ao cemitério”. Eu reparei na força com que ela disse isso, sem se emocionar, conformada. Fiquei admirada. Ela começou a me narrar a emoção de ser mãe. Geradora de sete crianças, para ela não havia nada mais gratificante e gostoso no mundo do que dar de mamar a um filho, mesmo com todas as dores que isso implica – aliás, segundo a senhora, essa dor faz parte da relação. É como se fosse o próprio anúncio de que todo prazer tem como oposto, a dor. Senão não será prazer.
E ela ainda fez uma breve reflexão sobre o momento do parto. Disse que para ter o filho nos braços, ele precisa nascer chorando. Chorando de desânimo, de tristeza por ter saído de seu refúgio tão seguro e vim parar neste mundo tão louco aqui fora. Neste ponto, ela fez uma observação: o valor da vida. Assassinos, “maconheiros e maconheiras” (insisto, nas palavras dela) são perseguidos violentamente por nossa sociedade. Por que? Não foi a própria desestabilização do mundo que os deixou assim? A quebra de valores, o rompimento com a moral e a ética. Ela disse que antes de acusar e exigir a morte de tais pessoas, os outros precisam refletir, pensar bastante se no fundo os acusados não serão meras vítimas.
Neste ponto da conversa, eu já estava bastante impressionada com a sabedoria daquela humilde senhora. Mesmo que ela estivesse apenas repetindo algo de que ouvira falar, ela soube reproduzir o discurso com sua própria interpretação – quer dizer, mesmo ela não tendo sido originadora de tais pensamentos, ela os ouviu, gostou e acreditou mesmo naquilo.
Ela continuou narrando as maravilhas de dar de mamar, dar banho e colocar um filho para adormecer. Então me contou de sua filha. Uma filha bonita e querida, segundo ela, moça realmente boa. Se casou com um homem que a fez sofrer demais. Havia uma mocinha, ela não explicou que tipo de relacionamento ela tinha com sua filha, que vivia na casa do casal, tida como filha. Esta mocinha cresceu, se casou e foi ter sua vida. O genro da senhora, descobriu-se depois, era apaixonado pela mocinha e mandou que o marido desta fosse embora ou ele iria mata-lo. Posteriormente, este mesmo homem levou sua esposa para um local deserto e fez atrocidades com ela. Estupro, agressãom humilhação e tortura foram apenas alguns dos tipos de delito cometidos por ele para com sua própria mulher. Ela morreu. Morreu por culpa deste monstro que foi seu marido. E adivinhe onde ele está? Morando junto, livre, leve, solto e feliz com sua mocinha.
Eu perguntei a senhora por que ele não havia sido punido. Ela me disse que sua filha escondeu o máximo que pode suas tristezas. Não denunciou. Não queria decepcionar a família e nem entristecer sua mãe.
Eu, estudante de direito que sou, sabia que casos como este aconteciam, mas nunca havia escutado um relato tão realista de tais atrocidades. Um sentimento de revolta e impotência se apoderou de mim. Eu sei o que acontece, mas não posso fazer nada para mudar isso.
Chegaram então a neta e a filha da senhora, chamando-a para um táxi. Ela me contou, antes de partir, que estava preocupada com sua neta, pois ela tinha probleminhas “de cabeça”, nada grave, mas estava apaixonada e que temia por esse relacionamento.
Se despediu de mim, agradecendo minha atenção e levantou-se, em passoa vacilantes rumo ao carro. Um andar lento, cansado pelo tempo. Parece que ela se lembrou de algo, e virou para mim. Sorrindo, disse: “Temos que gostar de quem gosta da gente. Bem, eu penso assim.” E se foi.
Engraçado que eu acabara de sair de uma palestra sobre filosofia, na qual o professor encerrou dizendo: “Nunca pensem que estão sós, pois vocês não estão. Há sempre alguém observando por uma fresta.”
E realmente. Eu pretendia me sentar e ouvir música num MP4, mas a senhora me observou pela fresta e veio me transmitir um pouco do seu conhecimento. Eu precisava de atenção, ela precisava de atenção.
Post Scriptum: As vezes as pessoas só precisam de um pouco de atenção.